Franco, direto, sem rodeios. Ljubomir Stanisic não se cansa de dizer que vive para comer. Gosta de experimentar novos sabores e confessa que o amor não pode faltar enquanto ingrediente principal na vida de um cozinheiro. Dinâmico por natureza, multiplica-se em projetos e até já criou duas cervejas. A mais recente, lançada este ano, chama-se “Bicho do Mato” e foi produzida em parceria com a Cerveja Letra.
Quais os projetos a que se está a dedicar-se mais atualmente?
Neste momento, estou 100% focado no novo 100 Maneiras, que abrimos no dia 28 de fevereiro, no Bairro Alto, em Lisboa. Foi um projeto que levou quase quatro anos desde a ideia inicial à abertura mas que, hoje, não temos dúvida que abriu quando tinha de abrir. O restaurante é a evolução natural do antigo 100 Maneiras, aberto em 2009, duas portas ao lado deste novo espaço, e é um reflexo perfeito de quem sou, da decoração aos menus, passando pela importância da sustentabilidade. Uma vantagem destes quatro anos foi termos tido tempo para pensar em cada detalhe e acredito que isso se sente.
Como tem corrido a experiência deste novo restaurante mas também do Bistro 100 Maneiras? Qual é o perfil de cliente de ambos?
O 100 Maneiras acabou de abrir e tem sido ótimo, temos recebido muito bom feedback e tem sido uma experiência muito boa para nós, enquanto equipa. O Bistro 100 Maneiras abriu em 2010 e foi desenhado para ser como a minha segunda casa: um espaço onde me sinto muito bem e quero que os clientes também se sintam assim, confortáveis, à vontade, com boa música, sem medo de rir e falar alto, com grandes cocktails e grandes vinhos e um menu que inclui aquilo que gosto de comer em casa. Quanto ao perfil de clientes, diria que os espaços se destinam a gente que gosta de comer, de se divertir e de ser feliz.
Considera que o programa “Pesadelo na Cozinha” mudou um pouco a forma como os portugueses escolhem os restaurantes para ter uma refeição? Na sua opinião, o que justifica o sucesso do programa e o que retirou dessa experiência a nível pessoal?
Honestamente, não faço ideia, mas a julgar pelas mensagens que recebo nas redes sociais acredito que sim. Acho que o programa tem uma mais-valia muito grande que é a de, no fundo, ser muito emocional. O meu objetivo ali é ajudar pessoas, ajudá-las a andarem para a frente, e isso mexe com quem assiste ao programa, acabando por ser muito mais que um programa só de cozinha.
A nível pessoal… é difícil responder. Teve muita coisa boa e algumas coisas más, como a dificuldade de passar incógnito, algo que ainda tenho alguma dificuldade em lidar.
Como avalia a gastronomia em Portugal atualmente?
Já disse e repito: Portugal tem uma cozinha maravilhosa. É uma cozinha de engenho, de necessidade, em que um pedaço de pão seco, azeite, alho e coentros fazem uma açorda. É genial. Para além disso, temos produtos incríveis, a começar pelo peixe e marisco, que são dos melhores do mundo. Hoje, Portugal já tem mais noção disso e há cada vez mais gente a valorizar esses mesmos produtos e tradições, e a contribuir para que a cozinha portuguesa seja cada vez mais conhecida e reconhecida no mundo.
“A parceria com a Letra, tal como já tinha acontecido com a Mean Sardine, apareceu por gostar muito das cervejas artesanais da marca. São das mais puras do mercado e as que mais gosto de beber”
Fale-nos da parceria com a Cerveja Letra na criação da cerveja “Bicho do Mato”. O que levou a criar esta parceria e à escolha do nome?
Esta não é a minha primeira cerveja. Em 2015, com a Mean Sardine, tinha criado uma primeira cerveja chamada Lhubobeer. Com a “Bicho do Mato”, decidi fazer uma cerveja mais rústica, Double IPA, com algumas especiarias – como a minha preferida, ras el hanout. A parceria com a Letra, tal como já tinha acontecido com a Mean Sardine, apareceu por gostar muito das cervejas artesanais da marca. São das mais puras do mercado e as que mais gosto de beber.
O nome é uma brincadeira que começou em Grândola, onde esta cerveja, aliás, foi apresentada pela primeira vez, numa festa na aldeia. Comprei uma casa lá há uns meses e os habitantes entretanto começaram a perceber o quanto eu gostava de caçar e andar no mato… fiquei com a alcunha e acabei por batizar também a cerveja a partir dela. Não posso deixar de referir também o Hélio Falcão, um artista e amigo, que criou aquele rótulo incrível e que torna a cerveja ainda mais especial.
Na sua opinião, que pratos combinam melhor com cerveja?
Umas pork ribs, bacalhau frito e carnes grelhadas no geral… A “Bicho do Mato” é uma cerveja muito equilibrada, fica bem com praticamente tudo, mesmo com peixes mais gordos, azuis… A exceção talvez sejam os doces por terem muito açúcar.
Gosta de beber cerveja? Tem preferência pelas convencionais, as sidras ou as artesanais?
Gosto muito. Prefiro as cervejas artesanais, sem surpresas. Já fiz duas e tenho nos meus planos continuar a criar cervejas como estas, que sejam um reflexo de quem eu sou.
Quais são os seus ingredientes de eleição? O que não pode faltar na cozinha?
Ras el hanout – não é por acaso que escolhi este ingrediente para a Bicho do Mato, é uma mistura de especiarias muito presente na minha cozinha. Tomilho – a minha erva de eleição, está inclusive presente no painel que criámos para o meu novo fogão, com uma caveira rodeada de tomilho onde se lê “Coquo ergo sum” (Cozinho, logo existo). E amor – porque sem amor, sem coração, nada funciona.
“Acho que a guerra fez de mim um guerreiro. Ensinou-me a relativizar, primeiro, e a nunca baixar os braços. Não tenho medos, vou à luta sempre que for preciso”
Que memórias e que ensinamentos trouxe da sua infância e do facto de ter vivido a guerra da Bósnia enquanto adolescente?
Tenho muitas memórias, boas e não tão boas, naturalmente. Acho que a guerra fez de mim um guerreiro. Ensinou-me a relativizar, primeiro, e a nunca baixar os braços. Não tenho medos, vou à luta sempre que for preciso. Atirem-me ao chão e eu levanto-me!
Costuma afirmar que quis fugir do seu país sobretudo pela falta de futuro. Encontrou em Portugal outra perspetiva de vida?
Claro que sim, basta olhar para mim. Cheguei em 1997, já passei mais tempo em Portugal do que em qualquer outro país. Sinto-me português.
Tem saudades da sua Jugoslávia?
Sim, tenho saudades da minha Jugoslávia. Uma Jugoslávia antes da guerra, onde era um miúdo normal, muito feliz. Gosto muito daquela terra, daquele povo, e hoje, temos as pazes mais que feitas.
O que o levou a abraçar a sua profissão? Porque decidiu ser Chef?
Não decidi tornar-me Chef: decidi tornar-me cozinheiro. Chef não é uma profissão, é uma posição dentro de uma equipa. Os meus braços, as minhas mãos, são de um cozinheiro: tenho queimaduras, cortes, calos. Não sou um gestor. Tornei-me cozinheiro por acaso. Durante a guerra, aos 14 anos, empreguei-me numa padaria para sustentar a minha irmã e a minha mãe – naquela altura as mulheres não conseguiam arranjar emprego. Quando vim para Portugal, acabei por procurar trabalho na mesma área, na cozinha, e aos 18 anos, talvez, percebi que queria levar isto a sério e decidi estudar, estagiar, fazer tudo o que fosse preciso para ser o melhor cozinheiro que pudesse ser.
O que é preciso para se ser um bom cozinheiro?
Comer, sobretudo. Mais do que as técnicas, é preciso provar o máximo possível e treinar o paladar.
Mesmo tendo passado por alguns sustos relacionados com a ingestão de alimentos, continua a mover-se pela curiosidade de experimentar novos sabores?
Claro que sim. Digo sempre que vivo para comer, não como para viver.
Quais são os critérios essenciais para a escolha de profissionais que venham a integrar a sua equipa?
Tenho de saber que se um cozinheiro me diz que vai estar no restaurante às 9h00, estará às 9h00. É preciso haver essa confiança, em primeiro lugar. Depois, procuro garra, vontade de trabalhar, de aprender, e também humildade, porque sem ela, não há espaço para o crescimento. O talento é importante mas sem o resto, sem o trabalho de fundo, de nada vale.
Quem são os seus Chefs de eleição e que o inspiram na sua profissão?
Muitos. Felizmente há muitos bons Chefs e estamos constantemente a ser inspirados e a evoluir uns com os outros. Em termos globais, escolheria o Anthony Bourdain, por toda a filosofia e trabalho que fez.
O programa da RTP, estreado em março deste ano, em que abordou a gastronomia do séc. XVI e do século XX apresentou um registo completamente diferente seu. Acha que as pessoas o confundem muito com os traços de personalidade do programa “Pesadelo na Cozinha”?
Eu sou exatamente aquilo que as pessoas veem no programa. O que algumas pessoas não percebem é que ali tenho uma semana para ajudar os restaurantes. Não tenho tempo para ser brando. Nas minhas cozinhas há um trabalho diário, posso perder mais tempo a conhecer cada pessoa, a ensiná-la… Para o programa funcionar, tenho de ser eficaz, e isso implica ser frontal, não posso estar com rodeios… De resto, aquele sou eu. Como no programa da RTP, sou eu também. Curioso, estudioso, amistoso. Nunca conseguiria criar personagens ou uma pessoa que não sou. Sou cozinheiro, não um ator.
Vai lançar-se em novos projetos ainda durante o ano de 2019 que possa revelar?
Este ano, quero estar sobretudo focado no meu novo restaurante. Mas a verdade é que nunca paro quieto e é bem possível que ainda surja muita coisa.
Perfil
Nascido em Sarajevo, Ljubomir Stanisic chegou a Portugal em 1997. Abriu o seu primeiro restaurante em 2004, em Cascais. Em janeiro de 2009, inaugurou o seu primeiro restaurante, em Lisboa, o 100 Maneiras, no Bairro Alto, com um menu único de degustação e, um ano e meio depois, o Bistro 100 Maneiras, considerado o melhor restaurante do mundo pela prestigiada revista Monocle, em 2017. O cozinheiro “jugoslavo mais português de sempre” divide o seu tempo entre o 100 Maneiras e a consultoria gastronómica no Hotel Six Senses Douro Valley (desde 2016).
Autor de cinco livros de cozinha e cocktails, foi jurado do primeiro Masterchef Portugal, coautor e protagonista do programa “Papa Quilómetros”, exibido na Fox International Channels por toda a Europa e, no início de 2017, tornou-se uma cara conhecida do público em “Pesadelo na Cozinha”, recordista de audiências e já na segunda temporada.
No final de fevereiro de 2019, abriu o novo 100 Maneiras, no Bairro Alto, um projeto planeado durante quatro anos e que é a consolidação de Ljubomir, enquanto homem e cozinheiro, e do 100 Maneiras, enquanto marca única na gastronomia.